Momento da Poesia - Com Rodrigo Schiavini
Amor e Desejo
Rodrigo Schiavini
Quem ama, quer, quem quer, deseja. O amor
desinteressado é uma lenda piedosa. O interesse nasce da essência do ser. A sua
projeção no plano existencial é determinada pelo interesse da comunicação. Esse
interesse básico permanece e o domina em toda a sua existência. Comunicação é
relação e nesta surgem os atrativos das coisas, das situações e dos seres. Os
atrativos formais, situacionais, psicológicos e culturais provocam e estimulam
o interesse recíproco entre os pares. O interesse inicial desencadeia a seqüência
de interesses que os levará ao despertar do amor, da querência e do desejo.
Querer é desejar sem apego, no plano superficial das necessidades imediatistas.
Desejar é querer com anseio, sob a ação dos instintos, das forças inconscientes
do existente, o ser entregue às exigências vitais do condicionamento humano.
Dessas especificações decorrem os vários tipos do amor, desde o instintivo
animalesco até o espiritual e sublime, que empenha no amor a totalidade do ser.
A paixão é o delírio do ser premido pela ação múltipla e confusa de todos esses
vetores em explosão psico-biológico.
Definir essas várias manifestações do amor é uma
necessidade da disciplina do comportamento e da conduta. O comportamento
disciplinado racionaliza a conduta e previne os enganos fatais do amor,
evitando o delírio da paixão sem asfixiar ou atenuar as expansões naturais do
amor. A pesquisa sobre o amor não pretende aniquilá-lo nem conformá-lo a
modelos e padrões, mas apenas tornar os amantes conscientes, pelo conhecimento
do terreno em que pisam, das ilusões e excessos a que podem ser arrastados. Em
todas as situações existenciais o conhecimento da realidade é indispensável ao
êxito. As correntes da energia amorosa participam ao mesmo tempo das aspirações
espirituais e dos impulsos vitais. Só o conhecimento racional dessa condição do
amor pode nos dar o domínio do espírito sobre ele através da razão, que é o
espírito em atividade na existência. Não há força de vontade que possa dominar
o amor, pois o amor joga com a vontade desde a sua manifestação inicial, sem
dar tempo à reflexão, que é logo posta a serviço e em função do interesse do
amor.
Todas as divagações sobre o amor nascem do seu
fluxo já desencadeado e servem apenas para estimulá-lo. A experiência do amor
não informa sobre ele, pois é feita de desejos e frustrações com resultados
traumáticos. Por isso os homens maduros e até mesmo os envelhecidos se
comportam no amor com a afoiteza e a inexperiência dos jovens. O ridículo dos
amores maduros decorre dessa situação etária desconexa. Não há conexão entre as
exigências do amor e as da idade madura ou senil no comportamento social. Essa
falta de conexão exaspera os amantes extemporâneos, tirando-lhes a
possibilidade de agir com moderação e prudência. Simone de Beauvoir protesta, em
seu livro sobre a velhice, contra a negação social aos velhos do direito de
amar. Um protesto inócuo, pois o problema decorre de uma defasagem etária em
que as condições naturais do processo existencial são violadas pelos amantes, o
que determina o desajuste indisfarçável da sua posição social. Os velhos não
perdem o direito de amar, pois a lei do amor é eterna e insubmissa às
ordenações temporais. Mas as próprias condições biológicas da velhice mostram
que esse direito deve ser exercido num sentido mais amplo e espiritual. O
desgaste das energias físicas anuncia o fim do ciclo existencial e a libertação
do espírito para dimensões mais amplas da realidade. É nesse momento que toda a
experiência existencial dos velhos fracassa ante o instinto de conservação e o
fluxo poderoso das energias da afetividade. Quando os velhos resistem ao
desgaste físico e mantêm a juventude do espírito – pois esse não envelhece,
deixando-se apenas influenciar pela velhice do corpo – a ilusão de uma condição
vital ainda equilibrada pode levá-los a tentar aventuras amorosas de
conseqüências perigosas. A pesquisa sobre o amor revela que a própria
virilidade física pode manter-se até a mais alta idade, tanto no homem como na
mulher. Mas demonstra também que as condições favoráveis da velhice conservada
não passam, em geral, de um curto período existencial, e mesmo quando se
prolonga mais do que se pode esperar, é sempre seguido de conseqüências que
embaraçam ou perturbam as relações do casal em desnível crescente, criando-lhes
problemas insolúveis.
Ao amor da velhice é oferecida a opção da família,
das novas gerações que brotaram do tronco agora envelhecido, mas ainda firme e
ereto, com suas raízes agarradas ao chão e seus ramos abertos ao céu. Vargas
Villa, já nas proximidades dos sessenta anos, revisando Ibis, livro da
juventude, para uma reedição na Itália, deixou-nos um testemunho impressionante
do envelhecimento consciente e carregado de belezas e emoções insuspeitadas:
“Como habrá quien puede llegar a estas alturas de
la vida, em que de pié, sobre la cimbre de la edad, divisamos a nuestros piés
las llanuras de la Vejez y enpezamos a descender a ellas com uma fronte gravida
de pensamientos y nun ritmo suave, como de subito nos hubiesen nascido unas
alas muy tenues, echas para volar em el crepusculo? El Sol, violador de todas
las tiniebras, no tiene ya, em la casta quietud de esse horizonte, nada que
violar.”
Não se trata de uma conformação forçada, mas de um
amortecer natural das trepidações da existência, na fase de chegada ao destino,
quando o navio diminui a contagem dos nós à vista da terra próxima, ou quando o
avião abranda a fúria das hélices para ensaiar o pouso tranqüilo e seguro na
pista certa e precisa do aeroporto. Todas as batalhas foram vencidas, para
aquele que soube lutar com plena consciência dos seus objetivos. Por isso o
espírito se quieta no corpo envelhecido e o homem sorri com leve ironia, toda
de auto-piedade, lembrando as refregas ardorosas em que se atirara coroado de
louros que murcharam na esteira do tempo. Se soube aprender as lições
existenciais, seu coração se abre para os filhos e netos, cercado de carinho e
respeito. É então que as aves se acolhem aos ramos das suas experiências, como
no soneto de Bilac. Trocar essa serenidade em que o passado ecoa surdamente, à
maneira do marulhar das ondas numa concha vazia, pelas inquietações de uma
reconstrução impossível é expor-se desavisado aos fracassos e ao ridículo. Knut
Hamsum adverte: “Um vagabundo toca em surdina, quando chega aos cinqüenta
anos.”
O envelhecer é o anoitecer existencial. Ao cair do
crepúsculo, aqueles que envelhecem normalmente sentem as asas tênues de Vargas
Villa, o impetuoso escritor colombiano que empolgou a Europa de fins do século
passado com seu estilo vibrante e nervoso, retumbante como o do Corão. Se houve
alguém que devia ter dificuldades para envelhecer, foi sem dúvida Vargas Villa.
Mas podemos ver, no pequeno trecho que dele transcrevemos, em sua própria
língua, tão apropriada a ele, como essa inteligência vulcânica soube
compreender a beleza da hora crepuscular. Era um solitário que amava o mundo e
a vida expansiva, numa intimidade telúrica e vivencial que só ele conseguia
manter. Falava de seu amor em estilo pirotécnico, mas o cultivava às
escondidas, num “tête-à-tête” ciumento. Esse intimismo o preparou para tocar em
surdina, obedecendo ao ritmo da vida.
Na proporção em que o organismo físico decai,
diminuindo a intensidade dos impulsos, a existência se torna cinzenta. Mas, ao
mesmo tempo, o colorido do poente anuncia um novo alvorecer. E quando as trevas
envolvem a paisagem, as estrelas assaltam o céu numa revoada de mundos
insuspeitados. É a hora em que o ser descobre a sua ligação secreta com o
Cosmos, a sua união profunda com o Todo. O espírito se desliga lentamente dos
particularismos do planeta para vislumbrar a imensidade que o espera, a
eternidade dinâmica que o atrai. As asas tênues do crepúsculo convertem-se em
asas estelares das almas viajoras de Plotino. Insistir no apego à vida terrena,
ao plano existencial, é lutar contra a realidade universal inelutável. Não são
apenas os velhos que morrem, mas na velhice a morte é o prêmio da vida, pois
esta se desdobra em novas e surpreendentes perspectivas nos ritmos do
envelhecer. A maior e a mais brilhante dessas perspectivas é a do amor, que se
amplia em todas as direções e eleva-se nas hipóstases do Inefável, onde as mãos
de Beatriz nos mostram as revoadas dantescas de asas angélicas. Repudiar essa
oferta divina para tentar readaptações mesquinhas e inviáveis no mundo dos
homens é negar-se a si mesmo. O ser que se entrega confiante a esse
arrebatamento não teme envelhecer. Descobre por si mesmo a harmonia perfeita
dos ritmos da vida, na sucessão gradual das fases existenciais, em que a
velocidade interior dos impulsos vitais acompanha a invariabilidade dos ritmos
exteriores, numa conjugação inexplicável, determinada por um esquema sutil de
leis desconhecidas. Arrebatado pela morte, que assusta e horrorizam os jovens,
o espírito amadurecido na experiência existencial descobre a si mesmo e entra
na posse da herança que o esperava segundo o ensino do Apóstolo Paulo. Não
encontra o Céu das lições religiosas, nem o paraíso terreno dos árabes com suas
urís e seus profetas, mas a realidade essencial das coisas e dos seres, em que
se identifica com a sua própria realidade.
Os que não venceram na projeção existencial,
identificando-se com as etapas da existência, apegando-se às formas perecíveis
da rotina vivencial, sem descobrir o sentido da descoberta filosófica de que a
existência é subjetividade pura, permanecem prisioneiros de si mesmos,
amarrados a ídeo-cristalizações do passado, apegados às hipóstases terrenas e
às aparências de uma velhice estacionária e por isso mesmo irreal, que só neles
existe.
Os velhos são geralmente acusados de retrocesso ao
egocentrismo infantil. Engolfam-se em suas recordações e só amam a si mesmos. A
velhice não deforma o espírito, apenas o liberta. O egoísta se engolfa no
egoísmo que cultivou na existência. O espírito aberto e generoso continua a ser
o que era. Mas o desencanto do mundo e da vida, a superação das ilusões tornam
geralmente os velhos mais introspectivos, desligados de uma realidade exterior
que para eles não tem mais nenhum segredo. Mas o amor permanece em seus
corações como a chama solitária do Templo de Vesta, sempre alimentada pelas
vestais das lembranças e das experiências adquiridas. A chama tranqüila, acesa
na penumbra do templo, não tem os lampejos de outrora, mas não se apaga. É o
fogo de coivara das queimadas sertanejas, que dorme nas brasas entre as cinzas
e pode reavivar ao sopro dos ventos. Basta o desencadear de acontecimentos
inesperados, com lufadas que atinjam a sua sensibilidade, para que o amor dos
velhos se erga novamente em labaredas de abnegação e sacrifício. É o que se vê
nos grandes momentos históricos e até mesmo no âmbito de instituições privadas,
quando velhos lutadores retornam à liça para defender os seus antigos
ideais.Nas lutas da última conflagração mundial, quando a loucura nazi-facista
empolgou multidões alucinadas, vimos os velhos lutadores do passado,
encastelados em suas posições definitivas ou até mesmo em seu repouso,
levantarem-se como barreiras ante a ameaça dos bárbaros. Churchill voltou, com
seu charuto à boca, a erguer o V da vitória aparentemente impossível sobre as
ruínas de Londres. Roosevelt deixou as comodidades de Washington para agir como
um jovem guerreiro em defesa dos ideais democráticos. Stalin saiu de sua toca
de urso para deter nas estepes geladas o avanço das tropas nazistas. Mas um
velho egoísta não titubeou, após a morte de Roosevelt, em ordenar o genocídio
atômico de Nagazaki e Hiroshima, porque em seu coração o amor pela humanidade
jamais conseguira lampejar. Na França, Petain, o velho herói do Marne, aturdido
com o esmagamento impiedoso da pátria, expôs-se à vergonha de Vichy para
poupar, à custa de sua própria desonra, a população indefesa.
Esses exemplos históricos, e tantos outros que se
perderam no anonimato das terras martirizadas, dos povos esmagados pela
catástrofe, mostram que no coração dos velhos a chama do amor continua acesa
enquanto as condições físicas do cérebro permitirem a atividade espiritual da
mente.
Naqueles em que o amor se elevou aos planos do
altruísmo, os desejos individuais, dirigidos pelas forças genéticas, apagam-se
para dar mais brilho aos anseios de sublimação. Os prazeres sensoriais perdem o
seu encanto e são substituídos pelas aspirações do futuro, entrevistas na
paranormalidade das percepções extra-sensoriais. O ser do corpo emudece ante o
contínuo e secreto murmurar do ser espiritual. É graças a isso que a aparência
juvenil de certos velhos não corresponde à realidade de sua inevitável
decadência orgânica. A chama do amor sustenta o corpo envelhecido.
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